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Fausto

Emanuel Graça



Nota de Edição

O percurso de Fausto não é unidimensional. Se a nível político se posicionou tantas vezes longe de uma tradição em que reconhecemos figuras como Teixeira de Pascoaes, Agostinho da Silva ou o próprio Eduardo Lourenço, em busca de um qualquer quinto império, é inegável que a sua discografia é atravessada por uma ideia central de portugalidade com que nunca deixou de nos encarar. Cantar a pátria era também invocar problemas e legados que à sua volta permaneciam engavetados. Neles remexendo, não raras vezes nos deixou ainda mais confusos. Pelo caminho, produziu uma das discografias mais ricas da língua portuguesa, nunca deixando de nela se refletir a sua e a nossa presença em lugares de exploração, a sua e a nossa dificuldade em articular a “lusitana viagem medonha”.”

Nesta leitura analítica da carreira de Fausto Bordalo Dias, Emanuel Graça guia-nos por uma experiência de diáspora, por uma nostalgia demasiado larga para se saciar numa única bandeira, numa única pátria imaginada. Na hora da sua morte, Fausto é, aos olhos da opinião pública, mais um cantautor consensual, de quem nos despedimos lançando rosas. Distanciamo-nos do tom elegíaco e raso com que temos enterrado os mortos e tentamos respeitar a canção: “Morrer, ficar quieto, não”.



Factos e Posições

Fausto Bordalo Dias deixou-nos na semana passada aos 75 anos. Será sempre um dos nomes maiores da nossa cultura musical recente: um dos que mais ergueu a bandeira dentro do cancioneirismo desta pátria.

A sua primeira aparição no cenário musical português dá-se em 1969, através da edição de um EP homónimo. Em 1970 edita o seu primeiro disco em formato longa-duração. No meio de uma geração que ia começando a sentir os impactos primitivos da globalização, o primeiro disco de Fausto – de título também homónimo - é um compêndio de inquietação à juventude (até porque, convenhamos, Fausto tinha 22 anos quando lançou este disco); influenciado pelos ritmos dos The Beatles, Bob Dylan ou Simon & Garfunkel, alberga-se nele um conjunto de canções cantadas em português como na altura raramente se faziam ou escreviam (ou pelo menos não com tanta qualidade e profundidade). Há direito ao protesto – que é distinto da intervenção - ao amor, à auto-biografia, à apatia e a uma suave brisa a pátria neste disco, que apenas teve edição na Holanda e que é um achado raríssimo hoje em dia. A consciência individual e colectiva sempre foi uma das maiores marcas de água nas canções do Fausto. 

Os seus discos sempre foram algo marcados pelo balanço entre as canções de amigo e as canções de cidadão: canções que sejam Pró Que Der e Vier, que, não por mero acaso, é o título do seu segundo disco. Editado pela Orfeu durante a ressaca do 25 de Abril (foi gravado antes e editado depois do 25 de abril, ainda em 1974): neste disco encontramos um cantautor em processo de transição, saindo do lugar da urgência do protesto para abraçar, daí em diante, a intervenção e, consequentemente, a reflexão colectiva. Abraça-a em todo o espectro da feitura de uma canção: letra, arranjo, ritmo. Aqui ressaltam as suas maiores influências da época e participam na sua gravação nomes como José Afonso ou Adriano Correia de Oliveira, dois dos maiores amigos de Fausto durante este período. Não se trata de um disco que tenha a visibilidade de outros momentos marcantes na discografia de Fausto, mas não tenho qualquer tipo de problema em apontá-lo como um dos meus elementos favoritos da sua obra. Despelotam canções como “Não canto porque sonho” (a meias com Zeca, numa canção comovente), “Marcolino” (uma das mais belas faixas do Fausto), “O Patrão e nós” (uma canção sobre querer andar à porrada com o patrão) , “Venha cá, sr. Burguês" ou “Pró que der e vier” (uma canção de força para quem tem encontrado dias virados do avesso):


«Dia a dia num aperto
que mais parece um deserto.
No descalabro do medo
mal se levanta um dedo.
Aconteça o que acontecer
não temos nada a perder,
dê no que vier a dar
assim não podemos ficar.»


No mesmo ano é membro fundador do importantíssimo Grupo da Acção Cultural, juntamente com José Mário Branco, Tino Flores e Afonso Dias. Mas abandona o projecto quando ainda decorria o louco ano de 1974. O projecto resiste até 1978.

Além de participar no disco A Confederação, de 1976, com José Mário Branco e Sérgio Godinho, edita até ao final da década mais três discos em nome próprio: Um Beco Com Saída (1975), Madrugada dos Trapeiros (1977) e Histórias dos Viageiros (1979). E foram sobretudo estes dois últimos discos a definir a linhagem e os horizontes tangíveis para o universo singular em que o estro de Fausto Bordalo Dias acabou por assentar futuramente: o fascínio pelo mar, pela viagem, pela descoberta, sonho e epopeia. O fascínio pelas naturezas rítmicas de um povo voltado para um horizonte que tinha a dimensão do seu olhar.


Reflexão Por Este Rio Acima

Não me parece descabido dizer que há um Fausto pós-Por Este Rio Acima, mas que se estava a perfilar antes, desde a Madrugada dos Trapeiros e do abraço mais profundo às nossas raízes folclóricas e ao mar. Editado em 1982 pela editora Triângulo, Por Este Rio Acima é um dos discos mais consagrados da música portuguesa. Nele se culmina toda a inspiração épico-marítima que Fausto absorveu a partir do livro Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto


“Cheguei perto do sonho
Flutuando nas águas
Dos rios dos céus
Escorre o gengibre e o mel

Sedas porcelanas
Pimenta e canela
Recebendo ofertas
De músicas suaves
Em nossas orelhas

Leve como o ar
A terra a navegar
Meu bem como eu vou
Por este rio acima”


Reza a lenda que dormia com ele na sua mesa de cabeceira. Embora não se trate de uma ode tão celebrativa quanto Os Lusíadas, Peregrinação não deixa de ser um livro efusivo no relato das conquistas passadas do nosso país. Serviu assim de catalisador para algumas das canções mais maravilhosamente escritas na língua portuguesa, canções com uma densidade fonética e lexical complexa, canções viscerais (e, aqui, deixem-me realçar o poder frenético, por exemplo, no crescendo de “Como um sonho acordado”: mas Fausto nunca se considerou propriamente um poeta, na medida em que durante o seu processo criativo fazia sempre a sincronia entre a escrita da canção propriamente dita e os arranjos musicais que a iriam revestir. Dizia que os poemas teriam de nascer isoladamente e que, por isso, o que escrevia não eram poemas, apenas canções. Assume-se mais como um trovador, portanto, do que como um poeta: à imagem de um veleiro, que dança com o ímpeto do vento, à descoberta da sua própria direcção. 

Musicalmente é um disco riquíssimo, que explora e ensaia diferentes dimensões sonoras da identidade portuguesa (viaja-se pelo Minho, Beira Baixa, Alto Douro ou Trás-os-Montes) – o principal mote deste disco. Fausto assumia um pendor etnográfico nos seus arranjos, como de resto ficou patente em quase toda a sua discografia: e em Por Este Rio Acima músicos como Júlio Pereira (nas violas braguesa e acústica e também no cavaquinho), Rui Júnior (nos elementos de percussão) ou o papel de Eduardo Paes Mamede como "pensador” dos arranjos do disco foram vitais para a identidade sonora do álbum e para ajudarem a trazer um olhar reflexivo sobre os elementos sonoros da portugalidade profunda. Soa a um vira pós-moderno, por vezes. Tratou-se de um sucesso quase instantâneo, e que contrastava com aquilo que, à epoca, José Afonso (que se tinha vindo a radicalizar nas suas canções) ou Adriano Correia de Oliveira (falecido no preciso ano de 1982) iam fazendo, sobretudo quando analisamos pela carga sócio-política impressa nas canções. Mas isso é outra discussão.

“Quando às vezes ponho diante dos olhos
A lusitana viagem medonha que eu dobrei
Os tormentos passados e os fados que chorei
Arde o corpo em oração entre pecado e perdão
Agonia o coração e arde o corpo”


Cantar a pátria

Fausto construiu um império cancioneiro único, quiçá a partir do ardor do seu corpo. Depois da obra-prima Por Este Rio Acima e da sua consagração enquanto trovador da nossa pátria, editou O Despertar dos Alquimistas (1985), Para além das cordilheiras (1987), A Preto e Branco* (1989), Crónicas da Terra Ardente(1994), Atrás dos tempos vêm tempos (1996), Grande, grande é a viagem (1999), A ópera mágica do cantor maldito (2003) e o seu último disco foi editado já em 2011, intitulando-se Em Busca das Montanhas Azuis. Este disco último, de resto, é o disco final da trilogia Lusitana Diáspora, iniciada por Fausto com Por Este Rio Acima e desenvolvida em Crónicas da Terra, cuja missão foi relatar a profundidade dos efeitos paralelos à diáspora de que o povo desta pátria foi alvo. Viaja pela nossa história, desde os descobrimentos aos tempos primitivos do colonialismo. A temática da viagem e da descoberta sempre compassou tudo.

Numa entrevista à RTP, já depois de ter editado Montanhas Azuis, e por entre algumas tiradas que nos ajudam a perceber a complexidade da sua obra – e da pessoa - , Fausto revela que talvez tenha feito canções para se perceber a ele próprio, já que também resultou de um produto da diáspora. Nasceu num navio chamado Pátria, viveu em Huambo na sua infância, voltou a Portugal no fermentar de uma enorme revolução estudantil, cultural e política. E foi-se reinventando até se encontrar a si próprio naquilo que lhe saía do corpo, as canções. Primeiro foram as de protesto, depois aquela fase pró que der e vier, e depois acaba por chegar à sua intervenção assumida e mais consciente: carregou uma bandeira jogando num campeonato só seu. Triunfou e fortaleceu tecidos culturais que, por vezes, se afastam logo desde o princípio das viagens.

Contexto

Numa altura em que se vê discutir e debater o conceito de portugalidade mais do que era costume, a obra discográfica de Fausto Bordalo Dias acarreta consigo uma declaração de amor (que também consegue ser trágico) à cultura e tradição de uma nação. E torna-se, na minha perspectiva, bastante redutor e injusto resumi-la ao disco Por Este Rio Acima – que, é, logicamente, um dos discos mais bem escritos e tocados na história da música cantada em língua portuguesa. 

Numa fase já avançada da sua carreira (e já muito longe dos tempos dos Beatles e do pró que der e vier, etc) Preto e Branco, editado em 1989, foi um disco apresentado com o mote “de se tratarem de canções de raízes angolanas, que constavam nas memórias de adolescência de Fausto”; nele se musicam algumas canções de poetas angolanos, como Ernesto Lara Filho, Mário António, António Jacinto, Mário Rui Silva ou Alexandre Dáskalos. Do penúltimo - amigo próximo de Fausto - tivemos a triste notícia da sua morte durante o fim-de-semana (aos 71 anos): trata-se de um dos maiores compositores de música tradicional angolana e, sobre a sua obra, espero que seja objecto de maior atenção pela generalidade das pessoas nos próximos tempos (até pelo ecleticismo que apresenta, vai pelo folclore, transita pelo jazz, alguns ares de mpb: sempre com uma alma e inventividade muito próprias). Do último, Alexandre Dáskalos, resulta a canção “Quando eu morrer”: 

“Quando eu morrer
Não me deem rosas
Mas ventos
Quero as ânsias do mar
Quero beber a espuma branca
De uma onda a quebrar
E vogar”

Fausto sonhou e cantou-nos as histórias suas e de um país com o mar virado para si. Engrandecendo sempre a nossa cultura. Alargando horizontes e criando diálogos por entre as narrativas e por entre o tempo. Gerou património, daquele que passa de geração em geração. Que é para apreciar e reflectir. 





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5 junho 2024
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